Sunday, March 12, 2006

O caso Jaques Pierre

Um artigo de um jornal chinês, em meados de 1986, descreveu a prisão de um cidadão francês pelos policiais chineses, em plena Praça de Tiananmen, em Beijing. Ele estava descontrolado, berrando e fazendo gestos ofensivos aos transeuntes ao redor. As autoridades chinesas processaram-no e enviaram-no de volta ao seu país de origem. Ao chegar em Paris, seu diagnóstico foi síndrome de esgotamento nervoso. Internado numa “clínica de repouso”, ele levou alguns meses antes de se recuperar e ser liberado.

Esse homem se chamava Jaques Pierre. Tinha sido enviado à China, como executivo da Petrofuture International, para negociar um contrato de aproximadamente US$ 500 milhões, e a implementação de uma refinaria petroquímica na China. No dia anterior da sua crise nervosa e deportação para a França, ele estava festejando o difícil acordo do seu negócio. Sem dúvida, o tempo que passou negociando com os chineses foi difícil, tenso e muito confuso. Estava sozinho numa terra de costumes diferentes e de pessoas e relacionamentos totalmente imprevisíveis, usando táticas negociais totalmente inesperadas e desconhecidas.

Mas, enfim, o contrato foi finalmente assinado, com grandes expectativas de bons lucros para a empresa representada por ele. Mais feliz estava ele por achar que nunca mais teria de voltar para renegociar com as maneiras estranhas e enervantes dos chineses. No entanto, havia mais uma pequena nuvem no horizonte. Um senhor chamado Li, um alto funcionário do Ministério das Relações Econômicas e Comerciais do Exterior, telefonou-lhe para marcar uma reunião logo à tarde no seu hotel.

Enquanto Jaques o aguardava e preparava as malas para o retorno, sua mente rememorou os últimos nove meses de intensas negociações e os erros cometidos no início, por ele e sua organização, em relação aos chineses.

O primeiro erro, pensou, foi a empresa ter enviado apenas ele, um alto executivo, sozinho, para lidar com tantas equipes diferentes de técnicos, executivos e políticos chineses. Ele achou que foi, pessoalmente, muito mal preparado para a missão. Embora a sua empresa tenha contratato “especialistas” nativos, descobriu que estes só possuíam um conhecimento teórico da China, e nenhuma habilidade interpessoal de como lidar com os diferentes tipos de negociadores. Esses especialistas diziam apenas que era difícil e duro negociar com os chineses, mas não tinham a menor idéia do que fazer para solucionar essas dificuldades.

Logo que chegou à China, Jaques foi recebido por rodadas intermináveis de jantares e banquetes, que o deixaram esgotado e confuso pela grandiosidade e intensidade da recepção. Quando pôde finalmente sentar-se com os negociadores chineses e explicar a posição e propostas da sua empresa, essa equipe desaparecia, misteriosamente, depois de alguns dias, dando lugar a uma equipe completamente diferente. Cada reunião tinha pessoas novas e estranhas. Outras vezes, as antigas equipes resurgiam por encanto. Parecia que ele estava condenado a explicar indefinidamente a posição da sua empresa para toda a população chinesa. Para cada reunião ele escolhia cuidadosamente suas palavras e seus argumentos, procurando criar uma boa impressão para pessoas que jamais expressaram seus pensamentos nem emoções. Cada palavra sua e as mínimas contradições eram cuidadosamente registradas pelos membros da equipe chinesa. E, nas conversas seguintes, essas contradições menores eram jogadas à mesa como se fossem pontos fundamentais na negociação, desconcertando-o e irritando-o, a ponto de perder a linha de raciocínio.

Seu plano de negócio, tão cuidadosamente preparado na sua matriz em Paris, começou a se fragmentar. Os negociadores chineses, dispostos a reter parte do capital a ser investido, insistiam em fornecer parte dos equipamentos necessários ao projeto. Jaques sabia que a qualidade desses equipamentos era questionável. Ele insistia, apesar das objeções dos chineses, que a Petrofuture não seria capaz de assumir a responsabilidade pelos resultados com esse padrão de equipamentos. Sua teimosia em recusar a proposta dos chineses começou rapidamente a “azedar” as relações.

Jaques estimou seu custo num valor muito mais elevado do que o real. Baseado nas sugestões dos especialistas, e sabendo que os negociadores chineses eram duros, resolveu aumentar os valores para ter espaço de manobra ao longo das futuras concessões. Para seu desapontamento, descobriu que os chineses sabiam muito bem os valores reais do projeto e dos equipamentos, e que eles haviam estado já em negociação com os japoneses, italianos e alemães sobre o mesmo projeto, nos últimos dois anos. A Petrofuture foi cotada não pela sua alta tecnologia, mas para “colocar mais fogo” na feroz competição entre os fornecedores. Para ele continuar no páreo, teria de reduzir seus preços em 15% de imediato.

Ao final do terceiro mês, as conversas foram subitamente interrompidas, sem nenhuma explicação. Jaques imaginou que os chineses estavam deliberando sua proposta e decidiu aguardar uma resposta. Depois de longas semanas de silêncio, finalmente recebeu uma ligação na qual foi informado que os chineses estavam dispostos a abrir mão da exigência dos seus equipamentos. Voltou, então, à sala de reunião, e as negociações recomeçaram do zero. Todas as pessoas com quem já conversara durante semanas pareciam ter se esquecido de tudo que fora falado anteriormente.

Jaques começou a sentir um ódio feroz contra tudo que era de origem chinesa. Os negociadores, a comida, o país, os hotéis e a vida miserável e indeterminada que levava em Beijing. Sua posição estava cada vez mais desconfortável, mas como um jogador de pôquer, apesar de as suas fichas estarem diminuindo, fazia sentido continuar apostando, mesmo quando um banqueiro francês o aconselhou, “na China, você deve saber quando parar ou irá perder tudo, incluindo sua sanidade mental e física”.

Jaques estava há seis meses na China quando, finalmente, recebeu alguns sinais encorajadores. Vários intermediários, todos garantindo acesso e bons contatos com pessoas-chave nos postos elevados da hierarquia burocrática chinesa, começaram a aparecer e oferecer soluções em troca de comissão ou taxas. A Petrofuture tinha feito negócios com países do Leste Europeu e sabia que tinha de “molhar” as mãos de pessoas-chave para que o negócio pudesse ser concluído. E Jaques tinha uma verba de até US$ 25 milhões para ser investida. Contratou um intermediário chamado Wang. Este tinha a responsabilidade de negociar o contrato diante de um sinal de US$ 5 milhões, quantia que foi depositada na sua conta pessoal. Feita a transferência, Wang sumiu, para nunca mais ser encontrado. Enquanto isso, as negociações entraram num longo período de silêncio.

Eventualmente uma reunião foi marcada com o diretor e a equipe da agência encarregada pelo desenvolvimento desse projeto na China. O desespero de Jaques era tanto, que deu ao seu oponente chinês um ultimato. Para sua surpresa, ao invés das intermináveis perguntas que costumavam fazer, os chineses permaneceram num pesado silêncio. E assim ficaram por quarenta e cinco longos minutos. Finalmente, o diretor assinou os documentos que Pierre tinha preparado. Estava acabado. Ao voltar para seu quarto no hotel, Jaques soltou-se e chorou como uma criança, de alívio e alegria.

Nessa última tarde na China, ele estava relembrando das dificuldades daqueles nove meses, quando o sr. Li chegou para a reunião, comunicando-lhe que, apesar do contrato já assinado com a agência governamental, como a responsabilidade pelo desenvolvimento do projeto e o acordo incluíam certas isenções de tarifas e impostos para a Petrofuture, era necessário a aprovação do Ministério das Finanças da China, e essa aprovação fora recusada. Portanto, as negociações teriam de recomeçar mais uma vez.

Isso foi a gota d'água para Jaques. Na manhã seguinte, a polícia o encontrou aos berros na praça e o enviou de volta para a França.

Jaques Pierre não é o nome real, nem Petrofuture, mas a história é verdadeira. Contada por uma executiva chinesa, essa história deve despertar um forte sentimento de familiaridade entre os profissionais que fazem ou fizeram negócios com a China.

Nosso trabalho e experiência com dezenas de empresas e executivos brasileiros e chineses nos últimos dez anos, e a valiosa parceria com uma das melhores empresas de trading (Kanjin Inc.), têm-nos demonstrado que os conselhos comportamentais sem uma compreensão das diferenças contextuais, filosóficas e culturais não são suficientes para manter um relacionamento profissional produtivo, e muito menos para neutralizar as estratégias mentais e negociais que os chineses realizam com mestria. Na verdade, temos presenciado mais fracassos e frustrações nessas negociações do que sucessos. Nossos resultados com empresas e clientes têm economizado tempo e dinheiro, principalmente por meio da minimização das frustrações e riscos comuns que as empresas brasileiras costumam ter em relações comerciais internacionais.

Essas frustrações, além das dificuldades de linguagem, têm origem nos erros e limitações da nossa atitude cultural, somadas a muita fantasia e estereótipos sobre os chineses, além de um total desconhecimento da sua cultura e seu impacto nas decisões e hábitos interpessoais. Mas o pior, no entanto, não é apenas o nosso desconhecimento, mas sim o conhecimento deles em relação às qualidades e fraquezas da nossa cultura e dos nossos estilos negociais.

Sim, os executivos chineses conhecem mais os ocidentais do que nós os conhecemos. Uma coisa impressionante desse cuidado cultural é que, na maioria das escolas da China, a língua inglesa é ensinada desde o primário, e a maioria dos executivos-chave nas empresas chinesas de hoje cursaram estudos superiores nos Estados Unidos ou na Europa; conviveram com a cultura ocidental, e muitos nasceram nesses continentes e conheceram suas limitações, suas preferências e seus recursos. Em contrapartida, raramente encontramos algum executivo ocidental formado na China.

Portanto, hoje os negociadores chineses compreendem melhor as qualidades e as fraquezas negociais dos ocidentais, e com isso estão mais bem capacitados para controlar e manipular o processo negocial do que nós. Eles conseguem desorientar um negociante ocidental com facilidade; tanto, que muitos reclamam que suas abordagens e negociações com os chineses parecem incompatíveis e ineficazes. Por isso, tendem a julgá-los como negociadores manipuladores, indecisos, imprevisíveis, instáveis e até desonestos, enquanto os chineses observam os ocidentais como negociadores ingênuos, grosseiros, desrespeitosos e previsíveis. Essas diferenças representam o clássico choque cultural.

A arte da negociação é um jogo contra a malícia do próprio homem, em que a sagacidade luta com estratégias de má intenção. Os jogadores nunca são o que parecem: um despista, insinua-se com habilidade e dissimulação e age de forma inesperada e imprevisível, sempre alerta para confundir ou encontrar um ponto de fraqueza nas defesas do seu oponente.

Para vencermos esse jogo, temos de aprender as táticas e o raciocínio dos nossos oponentes. Temos de desenvolver um modelo mental mais inteligente para nos prevenir, pela observação cuidadosa e a prudência, em busca de manobras ocultas ou jogos duplos, bem como adquirir habilidade para deixar passar a primeira intenção, à espera da segunda, e talvez da terceira. Precisamos aprender a lidar com dissimulações e estar preparados para descobri-las e ter opções vitoriosas para superá-las.

Os preceitos deste livro têm o propósito de desenvolver o seu poder de observação e de reação contra as pressões e manobras negociais. É pelo refinamento da observação que o empresário brasileiro poderá detectar, em tempo real, o que está mais oculto, raciocinar com mais sutileza e tomar decisões mais efetivas e produtivas.

A negociação não é só um jogo; é uma arte também. E a arte da negociação é o que nos torna humanos e sofisticados. Antes do conhecimento da negociação tudo era conflito e ignorância; a era do poder do mais forte. Com o aperfeiçoamento da inteligência, reforçamos também a força de vontade e a arte do diálogo.

Empresário, creio que a maioria dos seus futuros oponentes chineses serão naturalmente refinados, por fora e por dentro, em palavras e em intenções. Mas, por outro lado, será possível encontrar alguns que serão aparentemente corteses, mas intimamente ardilosos até nas suas boas qualidades. Em ambos os casos, independente da situação, a compulsão de manipulação e de dissimulações estará presente como em qualquer arte que estimule a inteligência humana, desde o excitante exercício da sedução até a negociação internacional.

Como desenvolver as habilidades interculturais que integrem as necessidades estratégicas da empresa e as características pessoais dos executivos? Como desenvolver um novo modelo mental na cultura organizacional que possa lidar com novas estratégias comerciais e conflitos culturais? Para isso, nossos treinamentos costumam enfatizar os três níveis chaves de negociação e adaptá-los às necessidades particulares de cada um:

1. Rapport. Envolvendo a compreensão da cultura, a filosofia, a etiqueta e as regras de conduta social do seu oponente.

2. Autodesenvolvimento. Novo modelo mental de autoliderança, de influência e os novos valores culturais para enfrentar as dificuldades do atual paradigma comercial.

3. Negociação. Envolvendo o conhecimento da filosofia e sabedoria da Arte da Guerra, os estilos negociais e de estratégias psicológicas dos chineses e refinamento das habilidades relacionais. Seleção dos melhores perfis psicológicos para liderar esse projeto intercultural. O desenvolvimento desse novo modelo mental é uma necessidade real e imediata. Esses elementos devem ser ensinados e integrados no arsenal dos recursos dos executivos ocidentais. Apesar de todos dizerem que negociar com os chineses é muito difícil e uma experiência enervante, queremos mostrar, neste livro, que, com uma preparação inteligente e abordagem apropriada, é possível fazer negócios lucrativos com eles e, ao mesmo tempo, conquistar o seu respeito.



Negócios com a China: Desvendando os Segredos da Cultura e...
TOM CHUNG
http://www.submarino.com.br/business/i_firstchapter.asp?pid=298074&prodtypeid=1

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